sábado, 23 de novembro de 2013

Elegia para um mestre ausente


João era um desses raros amigos que podiam entrar em casa de qualquer pessoa conhecida sem bater, tocar campainha, nem avisar que iria, mas não o fazia. Sua educação e respeito pelas pessoas não o permitiam.
João podia, estando em casa de alguém, abrir a geladeira, pedir um café, espalhar-se no sofá, mas não o fazia. A polidez acompanhava todos os seus atos.
João não dizia palavrões, não usava vocabulário chulo nem procurava adaptar-se à linguagem e habitos dos jovens. Não que se mantivesse longe deles ou deixasse de admira-los. Não o fazia por entender que para se comunicar com a juventude podia faze-lo tendo a idade que tinha, o vocabulário que construíra com suas leituras e mantendo, sim, a distância imensa que separa um mestre do aprendiz.
João era um mestre.
Lecionou Inglês e Arte por mais de trinta anos, vinte deles em companhia de minha mulher. Foi professor de minha filha, de centenas de amiguinhos dela e de milhares de outras crianças, jovens e adultos que hoje colhem frutos do que com ele aprenderam.
Muitos dos seus alunos o amavam. Outros o detestavam.
Detestavam-no porque, justo e íntegro, jamais permitiu ou aceitou a indisciplina, o desrespeito, descompromisso, desinteresse. Em nenhum momento foi conivente ou complacente com a mentira ou falsidade. Era forte em defesa da honradez e das verdades como as entendia.
João não sentia inveja, por isso não sabia conviver com invejosos. Não aceitava a injúria e por não aceita-la recusava a aproximação de pessoas maledicentes. Não cultivava maldade, por isso, de tanto observar a disseminação do mal em todo o mundo sem que nada pudesse ser feito para reverter, de tanto ver crescerem as injustiças, de sentir na pele que o bem não pode vencer o mal, era um homem doente.
Além de doente e professor, João era artista.
Em tudo o que punha as mãos provocava transformações.
Diz a lenda que um rei chamado Midas, com seu toque, transformava tudo em ouro.
João transformava qualquer coisa em obra de arte.
Sua casa era o melhor exemplo: do copo de beber água ao lustre antigo dependurado no teto da sala por ele decorada, tudo era arte.
Dizem que artistas se divorciam do mundo exterior.
João não. Não podia divorciar-se porque, como dito, foi mestre, e mestres não devem viver em seus universos, enclausurados, pois perdem parâmetros para orientar seus discípulos que perambulam carentes do lado de fora do mundo ideal.
As pessoas que o amavam formariam uma multidão se pudessem ser juntadas.
Talvez um ginásio de esportes não fosse bastante para tanta gente.
Na Vila Augusta, bairro de Guarulhos onde viveu, nas regiões onde lecionou, era raro encontrar alguém que não conhecesse o João.
Ultimamente andava descontente com a contramão tomada pela Educação como um desvio cômodo para a política do ensino, que despeja na contramão do caminho da excelência humana os estudantes que hoje transitam pela escola.
Andava desiludido com o atual modelo de Escola sem autoridade, sem força, degradada.
Vivia inconformado com a proliferação da delinquência como consequência da enfermidade da Educação, da Família, da política do seu país. Que também é o meu, possivelmente o seu que me lê.
Ainda assim torcia pelo Brasil. Gostava de ver nossa seleção de Vôlei vencer. Adorava ver o Ayrton Senna fazer tremular a bandeira verde amarela azul e branca em terras de estranhos. Mas, o Senna morreu e as outras bandeiras ficaram enroladas debaixo de sovacos malcheirosos. João lamentou a morte do ídolo e a inesixtência de outros que servissem de ícones.
Ele sentia falta de esportistas como o Ayrton, de políticos como Ghandi, de pintores como Monet e Almeida Junior, de poetas como Gonçalves Dias. Achava que podíamos ter mais de um compositor como o Chico Buarque de Holanda; Pensava que os brasileiros precisavam ler "O Meu Pé de Laranja Lima", "Rosinha, Minha Canoa", "O Pequeno Príncipe", "A Insustentável Leveza do Ser", "Longe é Um Lugar Que Não Existe"...
João passou um Natal conosco porém nunca deixou de nos visitar em todos os natais. Vestia-se de Papai Noel para encantar as crianças, gostava de carnaval e desfilava pela escola de samba Acadêmicos do Tucuruvi. Tinha, silencioso, sua religião, mas sentia um amor profundo por Chico Xavier e suas obras e procurava praticar seus ensinamentos.
Uma noite, comemorávamos o aniversário de minha mulher, João chegou com um vaso de flores (ele não dava presentes caros, mas valiosos). Conversamos muito e na saída ele nos deixou uma intimação: "Precisamos marcar outro encontro como esse. Assim que passarem as confusões do final de ano vamos acertar uma reunião com todos, todos..."
Desceu a escadaria do restaurante e foi-se embora.
Foi a última vez que o vimos.
João, hoje, é uma lembrança.
Morreu só, num janeiro amargo, como se não tivesse amigos, filhos, parentes...
Morreu só, como morrem indigentes, fugitivos, cães vadios...
A vida é algo meio tolo: assim que ela termina descobrem-se que dos muitos amigos que tínhamos nem todos eram amigos verdadeiros e, dos poucos que realmente eram, muitos não podem estar presentes.
João morreu repentinamente. Em seu velório seu corpo estava só.  Dos milhares de amigos, nenhum.
Fomos à missa de mês, entretanto não valeu muita coisa: João não estava mais entre nós.
Sua casa, vazia, está se degradando como a Escola que ele temia que apodrecesse.
Se nenhum dos filhos cuidar, em breve a casa serão escombros.
Escombros não combinam com o João. Ele que foi uma das mais belas edificações em que um ser humano pode se tornar.
Se os herdeiros não cuidarem, em breve nada mais haverá que ele tenha deixado.
Ainda que cuidem da casa e dos bens, um dia João não haverá mais nem em memória pois, como ele, todos passaremos.
João Arlindo Teixeira. Professor. Mestre. Amigo. Acabamos de marcar a missa de terceiro ano.
Mas, não valerá de muita coisa.
Nós queríamos mesmo o amigo vestido de papai noel enfeitando o Natal. Queríamos o mestre, professor, artista. Queríamos um telefonema dele, não a voz do padre encomendando um João que não temos mais a um Deus que nem sabemos se presta atenção à voz do encaminhante.


Gilberto Leite
gilbertopleite@hotmail.com

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Tempo não existe



Pouco antes da meia-noite os fogos já espocavam por todos os lados. 
Nas ruas gritos e cantigas e algazarras. O mundo todo parecia em festa como se não houvesse violência nem dor nem fome nem injustiças em lugar algum.
Dentro de casa, enquanto o velho televisor mostrava as comemorações pela virada do ano nas principais cidades do Planeta, todos nós, atentos à passagem dos últimos minutos a nos separar do novo ano, íamos sendo tomados por uma comoção incomum, um estado de quase felicidade e de esperanças somente sentidos em ocasiões como aquela.
Despistei. Saí sem dar a perceber. Fui ao jardim de casa onde não havia ninguém comemorando nada. De lá era possível avistar estrelas pairadas sobre a humanidade
Eu era muito jovem. Meu coração pulsava com maior vigor do que esse com que está pulsando agora. Meu cérebro, ao contrário, mais cauteloso que o coração convidou-me a refletir para além do que o peito ansiava.
Olhei para o meu interior e não vi luzes, nem fogos de artifícios, nem esperanças: 
No dia seguinte minha avó continuaria velha, arqueada e cozinhando e lavando nossas roupas apesar de sofrer de dor crônica na coluna; minha mãe trabalharia fora, da madrugada à noite, longe, muito longe, controlando pedais e agulhas de máquinas de costura industrias; meus irmãos continuariam inocentes até crescerem e quando crescessem possivelmente ficariam céticos igual a mim; meu pai não voltaria nunca mais do mundo das almas invisíveis; minha doença não se curaria; meu tio mais velho não se livraria do câncer; os mendigos não enriqueceriam; os desvalidos não se consolariam; os cães sarnentos continuariam vadios nas ruas; as religiões não deixariam de oferecer salvação e vida eterna em troca de bens terrenos; as goteiras na varanda e na cozinha permaneceriam nos dias chuvosos; o dinheiro não sobraria para comprar roupas novas, calçados bonitos, doces, boneca, carrinhos...

Compreendi naquela hora que Ano Novo não muda nada. Que todas as meias-noites são iguais e datas não transformam vidas. 
As coisas sim, passam, envelhecem, degradam-se, por si e em si.
Coisas e pessoas. Independentemente do tempo porque, descobri também, tempo não existe. 
O que passa é a vida, tempo não existe.
Já que era assim, Ano Novo começou a me parecer algo tolo: não há diferença entre o dia primeiro e o dia trinta, entre o dezenove e o vinte e cinco...
Nossos aniversários, então, que bobagem! Oferecem-nos presentes, felicitam-nos por mais um ano, só que esse ano não nos pertence, nada tem a ver com você nem comigo porque se ele aconteceu foi para o planeta ao dar um giro em torno do sol. Tempo é a medida entre um evento e outro.
Cada corpo celeste, cada sol ou galáxia ou universo têm suas medidas de ano, mas não há tempo algum a passar. 
O meu ano, ou as minhas medidas são as coisas que faço e as voltas que dou em torno da minha vida; meu tempo é o espaço decorrido ou percorrido entre minhas ações; é a distância entre dois fatos, é a duração de um trabalho ou da minha vida. Meu envelhecimento material sou eu passando e não um tempo exterior, que não existe. 
Anos são relativos, horas são medidas virtuais dentro da relatividade. Tempo, repito, não existe.
O que passa são as coisas e todos nós. Já tive sentimentos que acabaram, animaizinhos que deixaram de existir, pessoas que viraram saudade... 
Tempo não existe. O que passa são as coisas e todos nós.
Muito rapidamente.


Gilberto Leite

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Medo da morte



Morte não me assusta.
Juro que não sinto o menor temor. Que ela venha quando julgar que deva, estarei tranquilo.
Assusta-me sim a ideia de nunca mais ver certas pessoas.
Incomoda-me imaginar que me afastarei para sempre de minha filha e dos entes queridos que me ajudaram a construir a vida.
Dói um pouco pensar que não verei meus cães nem reencontrarei minha avó, meu pai, minha mãe; Juan Pablo, o pardalzinho da perninha quebrada; o peixinho Bud e seus irmãozinhos; as tartaruguinhas...
Afora isso a morte em si não me incomoda.


Gilberto Leite
gilbertopleite@hotmail.com

As faces da informação


Antes da instalação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) no Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro em maio do ano de 2012, foram feitas várias tentativas de tomada do morro pela Polícia Militar, que sempre terminavam em confrontos violentos entre policiais e supostos traficantes e seus bandos.
Assistindo ao noticiário de uma emissora de televisão por ocasião de um desses confrontos, causou-me estranheza o texto lido pelo apresentador, dizendo mais ou menos o seguinte:
“A polícia cercou todo o complexo do Morro do Alemão no Rio de Janeiro, dificultando a passagem de traficantes (...) em compensação os traficantes derramaram óleo em todas
as vias de acesso ao morro, impedindo que a polícia suba e consiga realizar suas ações" enquanto na tela as imagens mostravam  alguns carros militares derrapando e desistindo  de subir.
Notícia absolutamente verídica.
Agora, imagine a diferença do impacto caso o texto mostrasse inversão da situação. Mais ou menos dessa forma:
“ Os traficantes do Morro do Alemão derramaram óleo nas pistas de acesso(...) dificultando a subida dos carros policiais. Em compensação a Polícia Militar está cercando todo o morro,
impedindo que os traficantes e seus comparsas saiam do complexo.”
É fácil perceber que uma sutil modificação na ordenação de palavras faz uma enorme diferença. O texto lido na TV dava poder a um grupo. O texto sugerido transfere o poder a outro grupo.
É tão necessário ler os vários lados de uma mesma informação ainda que não mostrados, quanto importante é saber ler as várias maneiras de  apresentar um mesmo fato, recorrendo-se a mais de um veículo de informação e tendo-se em mente que existem inúmeros pontos de vista possíveis.


Gilberto Leite
gilbertopleite@hotmail.com

domingo, 10 de novembro de 2013

A dor do remorso

Quando Ziza não pôde mais ser minha namorada meu coração se dilacerou. Nada havia que preenchesse o vazio e a dor.
Desejando fugir do sofrimento tive de arranjar outra namorada, às pressas. Seria horrível ficar só. Qualquer que fosse, eu necessitava de uma.
Não foi difícil encontrar, namoradas há em muitos lugares.
Essa, a substituta, foi, como se diz, “um achado”, embora diferente de Ziza em tudo.
Sua beleza diferente, sua graça, seus modos, tudo me agradava.
Mesmo não sendo o amor que era Ziza eu a tive como uma joia, dessas que dão orgulho em ostentar.
Era muito bom estarmos juntos e, hoje, suponho, ela se apaixonou por mim.
Durante toda a estação de noites frias sempre carregadas de neblina, namoramos, convivemos, passeamos a pé pelo parque gelado; era romântico andarmos de rostos bem colados para, aspirando, trocarmos a fumaça que saída de nossas bocas. Achava-a sensual quando o frio fazia seus lábios roxeados e o rosto roseado.
Caminhávamos lentamente todas as noites pelo jardim iluminado por luz artificial que só se fazia bem forte perto de cada luminária, pois, longe, a cerração, como cortina, formava halos débeis e indefinidos.
Dentro de cada halo meu coração traiçoeiramente procurava por Ziza.
Penso que a namorada substituta, sem saber que era, chegou a suspeitar, às vezes, de meu pensamento longe, das evidências de meu olhar fugaz, do não falar, mas usando de sua habilidade feminina me retribuía carinhos, doçuras, enchendo-me de extensos e inesquecíveis intervalos de paz.
Para o resto da vida não pude mais desvincular de qualquer inverno, cerração ou frio a sensação de romance. Foi ela quem me ensinou.
Nunca mais perdi a sensualidade do vento, a paixão da garoa, nem a suspeita de poder a qualquer momento deparar-me com uma surpresa doce dentro de halos que se formam nas noites embaçadas de cerração.
Mas a vida segue e nos conduz e passa.
A exemplo da vida, todas as coisas também caminham para um fim.
Ainda não pressentíamos nada disso, então, eu e a namorada, enganando-nos talvez, seguíamos como se nosso idílio fosse eterno. Juntos, de mãos dadas, caminhávamos querendo acreditar que cada passo fosse o princípio de uma união eterna.
Entre nós, mãos quentes e apertadas, nossos braços balançavam marcando o avançar do tempo. Que estaria consumado ainda antes da última gota do inverno.
Meu olhar perdido, meu não falar foram afrouxando nossos braços. O pêndulo tornou-se lento até parar. E somente quando não balançava mais entre nossos corpos veio a mais dolorosa descoberta: o remorso, coisa que dói na alma, faz chorar, querer consertar, voltar, pedir perdão; mas, é irremediável, não se apaga mais.
O pêndulo parou por culpa da saudade de Ziza.
A namorada substituta derramou um choro sentido. Quando abria os lábios para balbuciar palavras de desolação uns grossos fios de saliva se formavam entre eles e rompiam-se como sua felicidade, enganada que fora por meu desejo de usa-la para amenizar a falta do amor que não pude ter.
Eu, condoído e remoído pelo remorso observava-a transfigurada e traída. Quis consolar, explicar, justificar, mas não havia o que dizer.
Olhando seu rosto sofrido, olhos vermelhos, nariz escorrendo, jurei do fundo da minha alma nunca mais fazer mulher chorar. Principalmente por amor. 


Gilberto Leite

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Luzes e sombras




Por volta de meus dezesseis anos, por necessidade da profissão em que eu me iniciava comecei a aprender desenho técnico na área de mecânica. Era muito fácil. Exigia, de início, um mínimo de domínio de certos instrumentos como régua, compasso, esquadros, lapiseira e poucos outros. A esse domínio havia-se de somar um conhecimento razoável de geometria e perspectiva.  Qualquer bom desenhista ou técnico ou engenheiro entendia ou se fazia entender na linguagem traçada, tracejada, pontilhada, com suas gramáticas universais.
Um desenho técnico tem a mesma interpretação em qualquer lugar do mundo.
Um arquiteto, ao examinar o projeto de outro arquiteto entende perfeitamente mesmo que falem idiomas diferentes e vivam em países distantes.
Entre um desenhista técnico e outro pode/podia haver grandes diferenças na pressão exercida com o grafite sobre o papel ou na inclinação da lapiseira, em virtude de um ser mais forte ou rude, um destro e outro canhoto, fraco, tímido, entretanto, a interpretação é sempre a mesma e inequívoca.
No parágrafo anterior eu usei “pode/podia” porque hoje em dia o ato de desenhar sobre uma prancha usando lapiseira, réguas, luminárias, transferidores, escalas etc. está quase totalmente substituído pelo desenho computadorizado. 
Talvez ao publicar este texto o desenhista técnico já não exista mais e em seu lugar tenha entrado algum software mais preciso. Nesse caso, não haverá nem como distinguir a pressão dos traços. As impressoras praticamente se equivalem e ainda que umas se diferenciem de outras, as diferenças serão delas, impressoras, e não entre quem clicou em “imprimir”, ou seja, se desenhos técnicos só não eram impessoais por trazer uma rubrica, agora deixam de ser por completo.
Iniciei este texto referindo-me a desenho técnico para lembrar que nesse tipo de registro gráfico a pessoa que o executa ou executava deve/devia dominar certas habilidades,  uma linguagem específica para sua comunicação interpessoal no dia-a-dia profissional –  e agora, cada vez mais, necessita  da apropriação de conhecimentos na área da informática caso não queira ser excluído do mercado. 
Fiz isso, para que fique muito clara a diferença entre desenho técnico e desenho artístico; representação gráfica técnica e representação artística; pintura e pintura artística.
Já me perguntaram: “Qual a diferença? Os dois tipos de desenho não contêm arte?”.
Sim. Entretanto, o primeiro, o desenho técnico, só permite uma leitura. Se for lido de duas maneiras diferentes, ou os leitores erraram ou errou o desenhista. A interpretação só pode ser uma, caso contrário algo sairá errado e desse erro poderá advir um ligeiro prejuízo ou uma tragédia.
Por outro lado, você já observou um quadro, uma tela, um afresco, um óleo, aquarela?
Mas, só observou ou tentou ler? Já lhe ocorreu que dois artistas jamais pintarão a mesma cena, ou nunca representarão o mesmo objeto da mesma maneira? Que o estado de espírito de quem pintou interage com o seu no momento em que decifra cada pincelada? E que os estados de espírito podem mudar a cada observação ou leitura?
Já reparou que na escolinha infantil, quando a professora distribui aos pequeninos, figuras iguais, impressas, para que eles as pintem, nenhuma será igual a outra? Ainda que a professora instrua: “a água é azul, a árvore é verde, o sol é cor de laranja...” nenhum azul, verde ou laranja sairá estampado igual aos demais azuis, verdes e laranjas? Já percebeu que cada criança tem uma leitura mental e uma transposição diferente para o papel, da palavra ou da ideia de azul, amarelo, vermelho e de água, árvore e sol?
Ocorre o mesmo com pintores experientes, artistas verdadeiros: olharão para um mesmo objeto e ao registrá-lo nunca obterão resultados iguais. Será possível perceber a emoção e intenção que desejaram transmitir, entretanto, cada obra dará a cada observador infinitas possibilidades de fruição.    
É importante e maravilhoso analisar pinturas ou registros artísticos. Isso nos aguça um outro senso de observação e visão, geralmente adormecidos em nós. É bom conhecermos várias obras de um mesmo autor, depois, de vários, pois nos dão familiaridade com suas características predominantes como certos traços frequentes, utilização insistente de determinados tons, preferências de cor ou tipos de paisagem ou objetos, inclinação da luz numa direção etc.  Com alguma experiência e determinado tempo de observação, passamos a conhecer quase na intimidade um pintor ainda que ausente deste mundo há meses, anos ou séculos.
Mas, o que eu mais aprecio ler não são as cores, as luzes e traços, porque na maioria eles nos são dados com leitura praticamente óbvias ou alcançáveis.
O que me fascina mais é a leitura das sombras.  
Muitos artistas utilizaram tempo importante de suas vidas estudando as sombras nas imagens reais para reproduzi-las em suas figuras; outros, já presenteados pela natureza com o dom da técnica da semiluz simplesmente exercem-na, fornecendo-nos, uns e outros, obras emocionantes aos olhos de olhar, de sentir e de comover.
No objeto pintado está o retrato do que o artista viu ou imaginou, adicionado de riquezas extras involuntárias que poderiam ser comparados aos chamados atos falhos, na psicologia. Ou voluntários, equivalentes às observações de rodapés nos textos escritos.  O prazer de saber ler esses objetos, seus atos falhos ou seus rodapés está na possibilidade de nos aproximarmos muito da personalidade do compositor. É como se o ouvíssemos. Como se fôssemos o(a) terapeuta e ele o paciente que se expõe.
Nas luzes estão as falas do artista. Nas sombras, lemos analogias, ou o que o compositor procurou ocultar, eufemizar, ainda que, também, inconscientemente. Se não for uma sombra puramente técnica e calculada – é importante frisar– ali estará um pouco de sua alma secreta. E como é valioso conhecermos almas!
Por isto eu sempre oriento a quem posso, a ler mais outras linguagens além da escrita e falada. Costumo sugerir que leiam fotos, retratos e pinturas. Luzes e sombras. Não importa de quem.


Gilberto Leite
 

  

DEUS DE UM MENINO CURIOSO



Penso que nasci errado por um lapso divino. Uma dose excessiva de dureza talvez tenha sido semeada no meu coração ou alguns grãos de senso crítico derramados em demasia em minha consciência.
Desde muito pequeno, bem pequeno eu já era do tipo que para acreditar em algo tinham de me provar ou usar argumentos que me convencessem sem a menor possibilidade de restarem dúvidas (provar e convencer são coisas diferentes).
Talvez uma herança geneticamente longínqua de um tal Tomé, ou São Tomé. Quem sabe? Embora eu não traga nada de santo nem de apóstolo em mim.  
Acredito que Tomé tenha sido cuidadosamente sábio. Se alguém ressurge transfigurado, transformado, mostrando uma aparência nova e diz: “eu sou aquele ”, nada mais coerente do que pedir:  “ (por estar com aparência diferente) me prove que você é aquele”.
Mas volto a falar de mim:
Ainda muito cedo tinha certa dificuldade em me relacionar com a fé. Era difícil ter fé no invisível, no intocável.
Assim, minha crença em Deus era precária embora eu confiasse nele. Crença e confiança também são coisas diferentes.
Quando minha mãe me falava a respeito de Deus, eu indagava:
“você já viu Deus?”  Ela me respondia “não”.
Então eu lançava outra pergunta:
“O padre ou os pastores crentes já viram Deus?” Ela me respondia “não”.
Certo dia, coroinha da paróquia que frequentávamos, perguntei ao vigário:
“O papa vê Deus?” Respondeu-me: “ver não, porém, recebe suas inspirações”  

Bem, se ninguém, nem o papa vê, quem me assegura que ele existe?  – questionava.
Mas não perdia a confiança.
Tinha até uma certa intimidade com ele porque criança não precisa crer para confiar. Se eu dissesse que hoje, adulto, eu confio em algo ou alguém cuja existência não me convence, perderia na hora a confiança de todos na minha inteligência. Porém, criança, eu podia. O mundo mental infantil é diferente. Criança pode muitas coisas que adultos não podem.
Confiando, minhas rezas eram honestas, meus pedidos eram justos dentro dos critérios de justiça estabelecidos pela religião. Nunca, eu quase sou capaz de jurar, jamais em uma prece fiz algum pedido importante que fosse todo para mim (exceto uns dois ou três, para não pensarem que estou exagerando, uns dois ou três de pequenina importância, como esse que aconteceu lá pelos meus nove anos: “Deus, se não for pedir muito, faça com que algum colega meu que tenha trazido um lanche bem gostoso para a hora do recreio perca a fome por completo e me pergunte se eu quero comer no lugar dele; desculpe o meu pedido mas a fome hoje está brava!). Pedidos grandes eram sempre para os outros.
Eu rezava muito, pedia muito, reconheço, mas prometia que em troca, caso fosse atendido, eu faria isso e mais aquilo ou deixaria de fazer aquilo outro. Assim era o meu relacionamento com Deus. 
É possível que houvesse algum quê de esperteza da  minha parte pois eu já tinha conhecimento da fala de Jesus que dizia que se um pequenino pedisse seria atendido, assim eu usava da minha condição de pequenino. Por outro lado, que culpa eu tinha se quem  ensinou isso foi o filho dele, quer dizer, d’Ele?
A grande verdade é a seguinte: eu pedi, pedi, pedi, pedi, e nada...
Uma vez, na confissão eu disse isso ao padre: “A gente pede e Deus não atende!”
O padre argumentou: “Talvez você esteja querendo muito mais do que mereça, talvez esteja indo pouco de encontro a Ele... Talvez você peça para pessoas que não mereçam receber o que você pede...”
Tal resposta me fez refletir por muito tempo sobre o que é que determina o que cada um de nós merece. O que é merecer muito, pouco, mais ou menos... Por que é que eu tinha de ir ao encontro de Deus? Devia ser o contrário: se, conforme me ensinaram, ele me criou, me amava e me desejava recolher de volta ao reino dos céus, ele é que devia vir ao meu encontro. E podia ter vindo de um jeito muito simples, colocando no meu coração uma sementinha de fé.
Quanto ao padre questionar se os outros mereciam ou não o que eu  pedia me bateu no coração como ofensa, as pessoas por quem eu implorava (e não eram bens ou luxos; eram alegrias, paz, bem-estar, saúde) eu as amava e quem eu amava merecia sim, além de que – eu li na bíblia e ouvi nos sermões – eram todos criaturas à semelhança de Deus que muito as queria (também)!
Ainda criança eu achei muito complicado pensar nessas coisas. Complicado e perigoso pois eu tinha um medo enorme de pecar. Aí, deixei de pensar.
Resolvi que um dia, pelo meu próprio esforço, sem reza nem nada, iria conseguir tudo aquilo que vivia desejando para mim e para os outros.

O problema é que eu precisava que as coisas acontecessem naquele tempo, não depois! E elas não aconteceram.

Gilberto Leite

Meus diálogos


 

Gosto muito de sair de noite às escondidas, sentar-me num degrau da escada, passar horas contando estrelas. Porque nesses momentos, geralmente e de repente nascem diálogos comigo mesmo (comigo mesmo é redundante, mas é usual), e há diálogos que só posso travar comigo, ninguém mais entenderia.
Gosto de ouvir o silêncio e os ruídos da noite. Eles sintetizam o som de todas as vozes e melodias cósmicas produzidas por gentes e não-gentes, presentes e ausentes; por anjos e não-anjos, ascendentes ou cadentes; por meteoros e universos.
Gosto de conversar com gatos que visitam meu telhado e muros (com os cães, à noite não muito, eles tornam-se menos conversadores). Gosto de falar com cachorros durante o dia quando se tornam mais espirituosos pois nos dão verdadeiras lições sobre como ser indiferentes ao que não é da nossa conta, como ser sinceros, quando defender atacando e quando evitar riscos fugindo deles.
Não gosto de pessoas que falam alto, que me interrompem, invadem meu espaço com seus narizes quase roçando no meu (rostos muito próximos, pele com pele só têm sentido se for para troca de carinhos, de calores eróticos); detesto falar com as que repetem sempre as mesmas coisas e também com aquelas que amam contar seus feitos heroicos ou gloriosos. 
Nas tragédias e mitologia antiga há espaços para heróis, há coerência. Fora disso não sei o que é alguém ser herói. Glória também é uma consagração incompatível com seres humanos; é uma palavra, um estado, elevação que combina, no meu modo de ver, com divindades; não me soa como algo do mundo de pessoas materiais.
Sinto falta de pessoas que conversem como o murmúrio da escuridão, como os gatos à noite e os cães durante o dia. Um tipo de pessoa que numa palavra ou num olhar consiga emitir o mistério do aummmmmmmm dos monges das montanhas ocidentais. 
Prefiro falar com estrelas ou com gente que pareça um pouco estrela, um pouco mosteiro, um pouco noite, gato, cão: pessoas que ecoem melodias de seu interior.

Gilberto Leite
gilbertopleite@hotmail.com



A repetição nos torna especialistas






O tempo nos ensina que só nos tornamos bons naquilo que repetimos muitas vezes no decorrer da vida. 
É a insistência em algo que nos torna melhores. 
Uma bailarina alcançará a harmonia dos passos e movimentos depois de muitos anos de ensaios árduos, e
mesmo após ter se tornado boa dançarina, quando mais treinar mais hábil será.
Um atleta, digamos um jogador de futebol, para nos referirmos a um esporte bem conhecido de nós,
se não se dedicar aos treinos diários nunca passará de um esportista medíocre, isto é, mediano.
Nós nos especializamos naquilo em que insistimos.
Quanto mais estudamos mais aprendemos a estudar. 
Quanto mais se engana melhor se desenvolve técnicas de ludibriar.
Há pessoas que passam a vida lastimando tanto que acabam ficando especialistas em deplorar. E suas vidas, claro, tornam-se o reflexo da especialidade que escolheram: nunca
estão boas. Como se diz popularmente são vidas que "andam para trás". Pudera, com tanta reclamação!
Há outras que adoram pôr defeito em tudo, ver sempre o lado imperfeito, apontar para o que não deu certo. Tornam-se ótimas nisso. Nem é necessário esforço para imaginarmos que vida terão. Serão angustiadas, pois para elas o mundo todo está errado e, pior, sem solução; é isso o que insistem em ver.
Conheci há algum tempo uma moça que não enxerga como nós. Ela não tem visão através dos olhos. Vê tudo com sensibilidades outras que teve de desenvolver. Para ela, tudo é sempre lindo; o calor é maravilhoso, o frio aconchegante,  a chuva, uma bênção; o canto dos pássaros ou o ruído das ruas lhe soam como música. Praia, cidade ou campo ama com  igual intensidade. Ela está sempre feliz.
Desenvolveu seu estado de graça louvando a vida diariamente, deliciando-se com os raios de sol que não enxerga, mas sente. Desenvolveu a paciência entendendo que nos congestionamentos, ou quando tudo para, aí encontra-se um tempo para meditar ou resolver um problema. Aprendeu que a poluição dos rios, as agressões ao ambiente, o drama ecológico do planeta não são desgraças mas sempre motivos para iniciarmos ações transformadoras. Ela é feliz pois desenvolveu o hábito de ver a felicidade em tudo. Acho que nem sabe exatamente que não enxerga como nós.
E nós, o que temos feito com maior insistência? Quais são os nossos hábitos? Que talentos estamos desenvolvendo?
O que poderemos esperar para nossas vidas? Ou já estaríamos vivendo os resultados daquilo em que mais insistimos?


Gilberto Leite

Deus não é bem assim



Há muitos anos, em um tempo já quase apagado da minha infância, perdi tragicamente uma pessoa muito querida e necessária em minha vida; desolado eu perguntava aos adultos por que aquilo havia acontecido comigo. Todos, em tom de consolo, me respondiam que “tinha sido feita a vontade de Deus”. 
Tempos mais tarde, mas ainda longe da idade da compreensão, perdi outra pessoa muito amada, vítima de uma doença prolongada e dolorosa. Inconformado, me via novamente em busca de explicações, mas tudo o que me diziam girava sempre em torno das mesmas afirmações: “Deus quis assim, Deus sabe o que faz...”
À medida que passava o tempo fui aprendendo através das pessoas que tudo o que nos fere, inclusive a morte de pessoas amadas e todas as outras desgraças, são cumprimentos dos desejos de Deus. 
Sendo assim, Deus não podia ser um sujeito bom que ama seus filhos. Deus, aquele que me apresentavam, era um ser sempre furioso, maldoso, insensível. E sendo assim, eu não necessitava mais andar lado a lado com ele, resolvi romper nossos laços. Afinal, quem precisa de um Deus cruel? Era o que eu pensava.
Foram necessários muitos anos para eu perceber que Deus não é bem assim. Nós fantasiamos muito a respeito do sofrimento, das coisas que não saem como pretendíamos e, para nosso próprio consolo - ou de terceiros - atribuímos a ele, Deus, a responsabilidade de todos os infortúnios.
Ele, criador de todas as coisas, é também o arquiteto de todas as leis, todas as já descobertas pela ciência e outras ainda nem sequer imaginadas. Uma delas é a lei do nascimento, desenvolvimento e morte. Seja de um universo com bilhões de galáxias equilibradas entre elas pela Lei da Atração ou da Gravidade, seja a de um ser humano como você e eu... Todo o tipo de existência presente, passada ou futura hão de cumprir a Lei, nascendo e morrendo. O que chamamos ou entendemos por sofrimento, dor, infortúnio, nada mais são do que nossos pontos de vista a respeito de nossos sentimentos individuais ou ainda conforme nossa visão de mundo ou visão do eu mesmo.
Portanto, Deus não é bem assim.
Não é bom nem mal - sob essa visão - mas justo.
E se pararmos para refletir melhor, descobriremos que há acontecimentos que, embora determinados por leis, nada têm a ver com a atuação pontual de Deus; são de nossa inteira responsabilidade:
Nós somos a principal fonte de energia das nossas limitações. Vivemos alimentando-as e aceitando-as como um destino definitivo e é assim que elas se instalam e permanecem em nós.
Toda vez que dizemos ou pensamos “nunca serei capaz”, estamos reafirmando limitações. Estamos determinando que não seremos capazes.
Quando explicamos nosso comportamento afirmando “Eu sou assim e não consigo mudar”, estamos construindo e fortalecendo os limites que nos impedem de avançar. Nossa mente é a responsável por nossa própria versão da realidade. Qualquer limitação que ocupe nossa mente é, de fato, real. E somos nós que pensamos. Deus não pensa por nós!
Devemos estar sempre atentos ao padrão de pensamentos que cultivamos. Se acreditamos que  “Nunca vou conseguir” , “Eu não posso” ou "Não nasci para ser feliz", acabaremos em breve sendo o resultado do que pensamos. Novamente, vale repetir, Deus nada tem a ver com isso.
Quanto às dores profundas, impossíveis de evitar, quando, por exemplo, por ocasião da perda de um ser amado, não entendamos como uma crueldade da Natureza ou de Deus. A perda, ou melhor, a morte é simplesmente o processo de realização de uma lei, e a nossa dor, por maior que possa parecer, em breve passará, tão logo compreendamos que o processo para o conhecimento de uma realidade mais ampla do que a da nossa versão limitada de vida, exige-nos um caminho de vicissitudes. 
Pensemos a respeito e fiquemos atentos àquela voz em nosso cérebro falando o dia inteiro. Ela está limitando ou impulsionando?  
Essa voz interior é capaz de dizer o que queiramos que ela diga. Você e eu, realmente, precisamos nos criticar e nos limitar? Trabalhemos para nos incentivar e observaremos quão rapidamente o mundo muda para melhor. E que Deus não é bem assim. Nossos detalhes, convicções ou sentimentos não o preocupam. E, pensando bem, ele nem deve ser tão egocêntrico a ponto de exigir que o cultuemos e adoremos acima de todas as coisas. Nem dá importância ao que somos. Se tão grande e poderoso, certamente não será ciumento, nem feroz, nem mesmo amoroso pois estará acima de qualquer sentimento insignificante como os nossos ainda que nos doam muito.
Deus não é bem assim...

Gilberto Leite


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Tudo passa



Pelo vidro da varanda eu observava o sabiá agitado sobre o galho jovem da primavera  que oscilava com o peso da ave. Levantando os olhos via por sobre o muro o azul-escuro da Serra da Cantareira, uma pequena parte dela ainda não devastada por humanos destruidores.
Ocorreu-me um desencadear de pensamentos intrigantes: Quanto tempo viveria o sabiá, tendo de vir da serra ao meu quintal em busca de alimento, correndo o risco de nem sempre encontrar? Teria ele filhotes? Quanto suportam viver filhotes de sabiás que têm de viajar distâncias enormes e voltar a alimentá-los um a um quando encontram alimento? Qual será o último sabiá dessa parte visível da Serra da Cantareira? Qual será o primeiro dia em que nessa parte da serra, em lugar de mata, haverá apenas o amontoado de casas de tijolos baianinhos, que já vem avançando pelos dois flancos? Quanto tempo?
Verei o último pássaro? Verei a vegetação dessa Cantareira escassear até que se derrube a última árvore ?
“Verei ?” Uma inquietante indagação pois dou-me conta também do meu tempo:
Ao nascer todos já estamos prestes a morrer. Morte não tem hora certa. Apesar de pesquisas apontarem expectativas de vida cada vez mais longas, é certo que se morre com um dia de vida ou mais ou menos, assim como se morre aos cem anos ou mais ou menos, sendo que à extremidade da velhice as possibilidades de chegada são menores. Menos pessoas morrem com mais de cem anos. Poucas, proporcionalmente à população mundial, encerram a vida com mais de noventa, oitenta...
Pensando assim concluo que se somar à minha idade atual o número de anos correspondente à metade dela, viver até lá me colocará entre os casos raros de longevidade.
Caso some um terço do tempo já vivido, chegarei ao limite do que se pode atingir com boa saúde mental, razoável saúde corporal, certa independência motora...
Isto me indica que a cada hora passada estou caminhando em velocidade mais acelerada ao encontro da morte. Não me restam décadas como quando eu era criança. Não me sobram muitos anos como quando eu era jovem.  Não tenho muito tempo.
Esse tempo pode acabar antes de eu encerrar este comentário ou logo em seguida; pode ocorrer que termine amanhã, mês que vem, mas, o momento certo é o de menos importância. O que deve me ocupar agora é a preparação. Para a morte.
Não me refiro àquela preparação espiritual, religiosa, não, não é isso. O que vem depois, se é que vem, já está definido e nem é motivo de minha preocupação. Refiro-me ao que fazer, ao que deixar antes que o dia extremo chegue.
Como não posso saber que dia será esse, tenho de pensar de forma lógica: falta pouco e tenho de correr. Correr muito.
Dirão alguns: Correr para a morte é tolice; inteligente é viver com intensidade a vida que resta; vai que ela ainda seja mais longa do que espera!
Digo eu: Restante de vida é como sobra de feira. Vida é ilusão. Vida é uma enganação da qual fomos vítimas; caímos nela inocentes e acreditamos em futuro. Futuro não existe, é uma farsa que está sempre além, nunca pode ser alcançado; quando chega já se tornou passado. Real é o fim. Ninguém nem nada fugirá dele. Do sabiá à montanha, do tijolo baianinho à vida humana, tudo passará.

Gilberto Leite
 

Minha filha





Outro dia, minha filha nasceu.
Com as pontas dos dedos da mão esquerda eu afirmava os pezinhos dela seguramente acomodada em meu antebraço, protegida em meu peito; com a outra mão eu a acariciava, fazendo-a sentir a presença do papai. 
Acolhendo-a dessa forma, tantas foram as vezes que cantei para ela dormir! Eu me lembro de muitas cantigas de que ela gostava, mas, em especial de duas com trechinhos assim: “Se essa rua, se essa rua fosse minha / Eu mandava, eu mandava ladrilhar...” e “Vem meu ursinho querido, meu companheirinho, Ursinho Pimpão / Vamos sonhar aventuras...” Era tanta felicidade!
Ela cresceu um pouquinho. Passou da medida do antebraço. Mudou-se para o colo. Mais um tempinho e já estava “montando cavalinho” – perninhas envolvendo meu pescoço, sentada em meus ombros – fazendo lindas viagens pelo mundo da imaginação: íamos à casa do coelhinho cinzento, ao castelo do fundo do mar, ao palácio dos anjinhos das nuvens branquinhas do céu, à floresta onde viviam todos os bichos bonzinhos – e todos são muito bons - entre flores, abelhas, borboletas e pássaros de todas as espécies...
Num outro dia, assim de repente, eu me vi empurrando-a no primeiro triciclo que ela ganhou. Ela não tinha forças para pedalar, eu empurrava, ela ria, ria...
Como brinquedos não crescem, ela ficou maior que o triciclo. Não cabia mais nele.
Foi por isso que veio a primeira bicicletinha, com duas rodinhas de apoio atrás. Eu ainda a empurrava ao mesmo tempo em que segurava porque apesar das rodas de apoio, ela ainda não tinha adquirido o equilíbrio necessário para lançar-se sozinha sem cair.
Veio a segunda bicicleta. Eu me lembro, brincávamos no jardim do Lyons Clube do Tucuruvi, que ela chamava de Parque do Portão Verde porque todo o gradil que o cercava –e ainda cerca–, inclusive o portão principal, tinham aquela cor.
Foi lá, que pela primeira vez, sem ela perceber, eu soltei a bicicleta. Ela continuou pedalando e se equilibrando sozinha, eu ia correndo ao lado sem interferir. Ao perceber que eu não mais a segurava, parou, como se já fosse experiente, exclamando:
“Pai, você soltou!”
“Soltei porque você já aprendeu a pedalar sozinha, filha... Vamos repetir?”
Foi uma tarde muito feliz. Ficamos algumas horas indo e vindo sempre em linha reta. Ela pedalando e eu correndo ao lado ou um pouco atrás. Cansei-me muito, na mesma intensidade em que enchi-me de alegria.
Na outra semana ela aprendeu a fazer curvas. Bem longas no início, mas assim que adquiriu confiança lançou-se em curvas mais arrojadas. Aperfeiçoou-se com rapidez. Adquiriu um jeitinho muito elegante de andar de bicicleta. Seus cabelos finos, castanhos claros, ora balançavam, ora esvoaçavam no ar. Então as mãos do papai segurando pelo dispositivo porta-brinquedos atrás do selim, definitivamente não eram mais necessárias.
Cresceu. Como minha filha cresceu! Veio a bicicleta maior pois a anterior e ela já não se cabiam.  O papai protetor, correndo junto, já não era mais necessário. Agora eu a olhava de longe, sentado no gramado.
Passou.
Um dia desses, nem faz um mês,  estávamos toda a família num restaurante da Serra da Cantareira comemorando os seus 17 anos.
Almoçamos juntos, assistimos ao final do campeonato de Fórmula um juntos (o piloto Lewis Hamilton ganhou seu primeiro título de campeão mundial.)  E por mais que eu me esforçasse para me concentrar na reunião, na corrida transmitida pela TV,  meus pensamentos acabavam se desviando, indo buscar reminiscências de minha filha. Desde o primeiro minuto na maternidade, da cantiga “se esta rua fosse minha...” até seus 17 anos. Era um filme rodando em minha memória, rodando sem parar.
Eu senti, mais uma vez, que o tempo e a vida são implacáveis. Eles passam impiedosos, arrastam tudo, levam embora mesmo os momentos mais emocionantes. O que por um lado é bom por criar espaço para novas situações de felicidade igualmente intensas. Por outro lado... há algo que tempo e vida não corrigem, não repõem: A saudade; o querer viver novamente uma determinada situação, o desejo de repetir uma experiência; o cheiro de talco; o bebê acolhido no antebraço; as mãos firmes segurando um triciclo; o contar histórias à noite, de fadas e castelos, de bruxas e magias...
Daqui a pouco ela estará na faculdade. Faltam dois meses. Penso que eu mesmo a poderei levar para realizar a prova, ensinar-lhe o caminho.
Sei que no começo eu ou sua mãe a iremos levar ou trazer muitas vezes. .
Sei também que, assim como as mãos segurando o triciclo, em breve ela não precisará mais que a levemos ou tragamos da faculdade.
Depois da faculdade, não sei. Não sei...
A única coisa que sei é que o tempo e a vida passam implacavelmente.
Minha filha já não discute mais biologia, química e matemática conosco, os pais. Ela sabe mais que nós.
Os voos dela são mais altos, não se prendem mais a umas pedaladas numa bicicletinha com rodas de apoio.
Em breve ela voará por alturas e distâncias que não poderemos nem saberemos acompanhar. Nem deveremos, que o espaço não nos pertencerá, as aventuras serão dela.
“Felizes voos, filha.” – Desejo de coração.
O pai fica aqui, de longe, acompanhando com olhos e alma. Torcendo para que todas as brisas que tomar no rosto e corpo, nesse voo, sejam refrescantes.
Mas, enquanto esse momento da independência completa ainda está apenas se prenunciando, eu quero viver tudo o que ainda nos sobra juntos, essa interdependência que também vai se diluindo. Porque, repito, tudo passa muito depressa.

Filha, esta mensagem não foi criada para cumprir uma pauta, não foi tirada da experiência de algum outro, nem foi copiada de nenhum poeta. Foi escrita para você e quando a ler, guarde no coração o que for possível extrair, mas principalmente meu recado de que nesta nossa vida tudo passa. Agarre todos os momentos com todas as suas forças e todo o seu amor enquanto eles durarem. Viva com plenitude qualquer detalhe de sua vida pois muitos detalhes poderão vir a se tornar gigantescas saudades em um futuro muito breve: para mim a saudade às vezes vem em forma de uma chuquinha de chá, uma canção de ninar, um cheiro de talco; para nós, um triciclo, uma brincadeira de gravar programa de televisão na sala – com microfone e tudo, lembra?– um almoço de dezessete anos, uma risada gostosa, frases trocadas pelo computador, um par de tênis, uma chuva, as travessuras da cachorra de estimação, o olhar-se no espelho com a cara pintada de palhaça, fragmentos de um texto de teatro, o teatro, um sonho bobo, um sonho sério, um sonho “impossível”, um desejo possível; até mesmo a cara chata do pai quando bate o incômodo da disritmia no shopping center...  Tudo passa e não volta mais.


(Este texto foi escrito no dia seguinte ao do aniversário de dezessete anos de minha filha) 


Gilberto Leite
gilbertoleite.sp@gmail.com





Viver morrendo





Hoje recebi uma mensagem da grande amiga Célia Maria, que mora na cidade de Taubaté. Ela me diz: “tenho olhado mais a Serra da Mantiqueira e observado mais os pássaros nos finais de tarde conforme você me sugeriu (...) realmente, essa atitude de simplesmente olhar para o que é belo e simples nos desestressa (...) pena que estamos nos aproximando do final do ano e a cada final de ano essa sensação horrível de que o tempo está passando tão rapidamente me entristece muito"
Na mesma hora digitei a resposta:
“(...) penso  que não é a rapidez ou o escoar do tempo que nos entristece. O que me causa grande amargor é saber que o tempo que nos resta – independentemente de ser ou não final de ano – vai ficando mais curto, não sabemos quanto, para realizarmos tudo o que ainda pretendemos. E há uma relação que por falta de uma palavra mais adequada eu chamo de injusta, embora não seja uma expressão justa. Relação, na minha idade, extremamente desproporcional entre o tempo vivido e o tempo a viver no que diz respeito ao realizado e a realizar. À medida que o tempo se escoa, que nós passamos, vamos descobrindo que há muito mais coisas por fazer. Sinto que se eu tivesse uma semana de vida e conseguisse listar tudo o que eu deveria ainda realizar antes de partir, essa relação seria bem maior do que  se enumerasse uma a uma todas as coisas que já fiz durante a vida. E não foi pouco!
Penso que pessoas inconformadas como eu jamais se dão por realizadas, sempre terão mais a acrescentar às suas obras tanto quanto mais se aproximem da consumação.
A minha tristeza maior ocorrerá no dia-de-não-poder-fazer-mais-nada, ainda que a vida flua por mais alguns instantes. Não vejo na vida qualquer grande significado se não houver realização nem capacidade de criar ou produzir.
Eu disse que há uma relação injusta, não encontrei ainda a melhor expressão mas dá para explicar matematicamente o meu sentimento: cada dia vivido deve ser eliminado do saldo de nossa existência. Cada hora a mais significa uma a menos. 
Quando vivemos, morremos.”

Nunca enviei a resposta. Preferi encaminhar votos de feliz Natal. Célia Maria não gosta de morrer enquanto vive. É uma mulher nascida para viver.


Gilberto Leite