Pessoas e histórias se perpetuam nas memórias de outras pessoas ou em
documentos impressos ou de alguma forma registrados enquanto houver quem
relembre, ouça ou leia sobre elas independentemente do tempo que houver
passado. A história que
narro a seguir não possuía nenhum registro escrito; permanecia solitariamente
guardada em minha lembrança; como não acho justo mata-la ao morrer, exponho-a
tal como ouvia há muito tempo.
(Existe no interior do Estado de São
Paulo uma localidade muito pequena denominada Guarapiranga. É um distrito do
também pequeno e aprazível município de
Ribeirão Bonito. Minha história de vida, de certa forma começa ali. Atualmente
Guarapiranga não chega a contar 2 mil habitantes; possui algumas ruas bem
arrumadas, uma praça ampla, igreja, escola, cemitério, banco, correio, conjunto
esportivo mas já foi muito menor. Há muitos anos não passava de um povoado
com algumas famílias de proprietários e trabalhadores rurais vivendo em torno
de um armazém e pharmácia cercados
por terras de cultivo de café, outras culturas secundárias, e gado. Naquele
tempo, eu soube, a área "urbana" consistia de duas ruas. Melhor: eram duas fileiras
de casas razoavelmente distantes umas das outras).
Foi em Guarapiranga que viveram o velho Bento e dona Rosa, meus bisavós por parte materna, minha avó,
tios-avós e alguns parentes distantes que não cheguei a conhecer. Creio que
hoje lá não haja mais descendentes diretos daqueles meus velhos familiares. Sei
de muitos fatos do lugar porque a avó gostava de nos reunir, meus irmãos e
eu, para rememorar seus tempos de infância contando-nos histórias por ela
ouvidas ou vividas. Sua voz entonada e dramática desenhava em nossas
mentes ora causos intrigantes atribuídos ao imaginário, ora outros
absolutamente reais, tão verdadeiros “como
este sol que está alumiando”,
dizia-nos .
De todas as histórias ouvidas sobre a vida em Guarapiranga, uma das que
mais emocionou foi a da Rainha.
Contava a avó, com lágrimas nos olhos, que, por algum motivo que
desconhecia, pois ainda era bem menina quando ocorreu, uma enorme dificuldade
financeira abateu sobre a família. Por consequência, clara inquietação
estampou-se nas fisionomias de seus pais, nas quais liam-se indissimuláveis preocupações. Talvez seus irmãos mais velhos compreendessem os
motivos, pois também andavam mudados. Ela não, via apenas que a vida e as
relações em casa não eram mais como antes. Abundâncias cederam lugar a
racionamentos; habituais conversas e cantorias ao pé de todas as noites mudaram
para sussurros cautelosos, e nos olhos de seu pai e mãe caíra um cismar misterioso
a avisar a então menina que, simplesmente, as coisas não estavam
nada bem.
Numa daquelas tardes, o velho Bento saiu mal-humorado,
talvez para Ribeirão Bonito ou Boa Esperança do Sul, retornando com o pôr do sol, cansado e com gotas de suor
brotando dos poros da testa. Voltou sem palavras. Não quis jantar, não proseou,
não tocou viola, não dormiu. Durante a madrugada todos ouviram seus suspiros e
gemidos abafados no travesseiro porque haviam todos perdido o sono também. Quem
conseguiria adormecer com ele naquela aflição? A bisavó cochichava solitária a reza do terço, um mal sinal. Terço se rezava às seis da
tarde; fora de hora, ainda mais de madrugada, só podia ser por algo muito grave.
Amanheceu e da cozinha logo exalou o aroma de café.
Em seguida, à mesa, família reunida, o velho, em vez de recitar a
oração da manhã como agradecimento pela noite passada, pelo alimento, e mais um
dia a viver; em vez disso coçou o rosto, baixou o olhar e pigarreou para anunciar:
- Não fiquem zangados com o pai, pois eu tive de fazer algo muito
doloroso, a vossa mãe já ficou sabendo... Hoje virá aqui um homem buscar a
Rainha... tive de vender ela que era a única coisa de valor
que nos restava, então, com o dinheirinho que entrar a gente começa a acertar a
vida. Perdoem o pai..."
-Rainha - dizia contundente minha avó - não era uma coisa. Nem tampouco um exemplar. Não era uma cabeça
de gado, um animal qualquer. Era como que parte da família. Não vivia no curral
mas à beira da porta da cozinha, às vezes metia a cabeça para dentro da janela
como criança curiosa. Ela era quem dava o leite de todas as manhãs para a
família e a quem mais se chegasse para um café com broa de fubá
e queijo vindo também dela, e parecia tanto saber disso que seu leite era o que de melhor havia por todas as redondezas.
Não recebera esse nome de Rainha por acaso, era mais que “de estimação”, mais
que uma princesa.
"- Rainha só faltava falar - explicava - e do jeito dela conversava com as pessoas como se fosse gente, entendia as palavras e nós entendíamos seus mugidos, comia nas nossas mãos, era nossa
melhor amiga, uma amiga e tanto! A gente sabia quando ela mugia de alegria, de saudade ou
quando queria pedir alguma coisa”
Teve de ser vendida.
“ - Vendida como se vende uma
saca de feijão! Negociada, assim, como um par de botinas, um chapéu! Como pôde
o pai chegar ao ponto de mandar embora em troca de dinheiro um ser que
respirava, que tinha sentimento e coração?”
Lá pelo meio da tarde apareceu na propriedade um sujeito com ar de
jagunço. Conversou rapidamente com o velho Bento, passou-lhe um pacotinho de dinheiro
recebendo em troca uma corda com a qual envolveu o pescoço da Rainha após examina-la
por alto. Despediu-se e foi saindo montado num cavalo elegante, segurando a
cordinha amarrada na vaquinha.
À família, observando de perto do paiol a partida da amiga mais que de
estimação, parecia tratar-se de um funeral.
” - Mais triste do que enterro de gente humana” – explicava a vó
quando nos falava.
Permaneceram todos imóveis lado a lado, pai, mãe e sete irmãos ombro a ombro assistindo a ida de Rainha cabisbaixa e triste como gente, sentindo no peito a dor mais cruel de traição; Meu bisavô, estendendo os braços como se possível envolver mulher e sete filhos lamentava:
- Igual a ela, nunca mais! Deus que me perdoe, tenha piedade de mim!
O jagunço tinha dificuldade em avançar porque Rainha dificultava a
marcha, caminhava resistindo aos trancos dados na corda, empacava arrancando gritos do estúpido:
- Vamos, bicho do diabo! Anda, peste!
- Vamos, bicho do diabo! Anda, peste!
“ - Que dor ouvir Rainha ser chamada
de bicho do diabo, de peste...”
No momento de o comprador e a vaquinha ultrapassarem a porteira,
instintivamente todos os irmãos passaram a gritar em conjunto “Adeus, Rainha...
Adeus...” (não costumavam dizer tchau, era adeus mesmo). A
mãe de minha avó aderiu, porém, em vez de adeus dizia “Vai com Deus, Rainha...
vai com Deus, filha... filha querida...”
Já transposta a porteira mas ouvindo as vozes tão conhecidas, Rainha, sem
compreender que devia seguir em frente a fim de consolidar negócios de homens, empacou definitivamente. Virou-se para
trás soltando um mugido tão suplicante que “perfurou o coração
como se fosse uma punhalada."
" - foi uma dor tão forte que ainda hoje continua atravessando meu peito"
."..............................................................................
A mãe da avó chorou: “Ah, meu Deus, que pecado, que dor!”
A mãe da avó chorou: “Ah, meu Deus, que pecado, que dor!”
As crianças choraram: “Volta,
Rainha, volta...”
Um de meus tios-avôs perguntou: “Vão
matar ela, pai?”
O velho, meu bisavô, tomado por impulso descomunal saiu numa
corrida desconjuntada dificultada pelas botinas, atravessou o terreno até alcançar o jagunço que teimava em puxar com violência Rainha, aos
gritos de “bicho do diabo!”.
- Calma lá! Pare aí, sô! Me dê cá essa corda e pegue seu dinheiro de
volta! A vaca não vai mais, a venda está desfeita!
- Como não vai? – retrucou o comprador irritado – Desistir de negócio
ajustado é desonra! Homem de barba na cara não volta atrás depois da palavra
dada”
- Pois vá você e a tal de honra pro meio dos infernos! Me dê cá a corda
que a nossa vaca fica!
- E se eu não entregar ela?
- Pois experimente!
Houve discussão acalorada com trocas de insultos e até ameaças
de morte. Mas a vaquinha ficou. Afinal, ali era o seu lugar.
Rainha viveu muitos anos entre aqueles meus antepassados.
Ela e minha avó se perpetuam em mim.
A primeira porque me foi contada em forma de historia-poesia. A segunda
porque foi uma mulher poesia que me contou histórias por muitos anos.
Hoje, em Guarapiranga, Ribeirão Bonito, ninguém conhece essa passagem.
Talvez somente meus irmãos e eu ainda saibamos.
Fazia uns sessenta anos desse ocorrido quando a vó nos contava. E agora retransmito exatamente como a houvia há mais de cinquenta................
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