terça-feira, 9 de maio de 2017

O Maior Amor do Mundo



Houve um tempo em que era possível ainda ver da frente da casa onde eu morava, o céu e o horizonte, e no fim da extensa rua, por entre gigantescas touceiras de bambus, as réstias do sol quando descia nos finais dos dias de primavera e de verão.
Por essa rua passava todas as tardes na direção das derradeiras réstias linda moça de cabelos cor de ferrugem, pele clara e sardenta, com seu uniforme escolar, voltando das aulas para sua casa que ficava, decerto, além ao bambuzal. Eu a ia observando desaparecer na distância da rua esburacada, no prenúncio de escuridão que rapidamente se transformava em véu a esconder a casa em que entraria ou que atalho tomaria lá adiante onde nem ela nem a rua podiam mais ser distinguidas. De tanto a observar em seus passos lentos, olhar perdido como se nada olhasse, passando como se não passasse, acho que me apaixonei. Talvez a tenha amado por causa da cor dos cabelos, das manchinhas em sua pele, da leveza no andar, mas, também, por me trazer crepúsculos e levar mistérios que se ocultavam com o chegar da noite. 
Naqueles tempos meus sonos tornaram-se mais difíceis: pensava muito na menina de cabelos cor de ferrugem, queria tê-la para mim, então meus suspiros me apertavam o peito e meus olhos abertos quase não me deixavam mais dormir de tanta insônia e palpitações. 
Certa vez senti um pouco de coragem e perguntei seu nome. Disse-me que se chamava Ziza. Pedi para acompanha-la, respondeu-me que não deveria. 
Outra vez perguntei onde morava, indicou-me que além do bambuzal. Pedi para acompanha-la, disse-me que talvez num outro dia. 
Numa terceira vez ofereci-lhe um ramo de gerânios que ela aceitou com um sorriso lindo, dizendo que eu lhe parecia bom. Pedi para acompanha-la, disse-me não ter certeza se convinha. 
O tempo foi passando, meu pouco de coragem me impedindo de insistir em acompanha-la e, quem sabe, no caminho, dizer que a amava. A timidez me deixava indeciso entre desistir ou agir. Desistir ou agir. Desistir... 
Houve um crepúsculo em que ela não passou. Esperei por muito tempo até piscarem as primeiras estrelas. Aguardei no dia seguinte e nos outros, mas compreendi que com a chegada das férias escolares ela não caminharia pela rua esburacada e poeirenta, por quase dois meses. 
A vida dá muitas voltas e em cada volta imprevistos geralmente nos surpreendem. Num desses imprevistos minha família e eu tivemos de deixar nossa casa, ir para o interior onde permaneceríamos por algum tempo, não muito. Era uma época em que longas viagens ainda se faziam de trem. 
Embarcamos em um vagão de segunda. O trem partiu à noite. Vi, pelo vidro embaçado da janela todas as luzes passarem. No princípio eram um turbilhão, uma nebulosa que logo escasseou. Uma a uma as luzes me iam dando adeus. Lembro-me da última que esperou-nos no topo de um poste, bem longe; fomos nos aproximando, chegando, até que ela passou a viajar para trás e desapareceu escondida pelo corpo do trem, na curva. 
Durante toda a viagem e todo o tempo em que permanecemos no interior, muito mais do que o planejado, a lembrança e a saudade de Ziza me acompanharam e cresceram em mim transformando-se no maior amor  da minha vida ainda tão jovem. Eu devia ter sido mais corajoso – pensava - e dito que a desejava, antes de nos separarmos; devia ter anotado seu endereço. Devia, mas, agora havia só lembranças e saudade.
Como nada é definitivo, um dia voltamos. Não para a mesma casa mas para o mesmo bairro, e a primeira coisa que fiz foi sair à procura de Ziza. Vários meses haviam passado e o sofrimento me dera coragem. Na pequena vila para além dos bambus muita gente conhecia a moça dos cabelos de ferrugem. Era a única com aquele tom. Fui informado de que ela e a família haviam se mudado para muito longe. Uma senhora moradora da casa vizinha da em que Ziza viveu explicou-me com certo cuidado que ela havia engravidado - "Um escândalo", acrescentou com olhos arregalados. Por consequência, a família envergonhada "desapareceu no mundo". Foi o que me disse.  
Naquele tempo as coisas eram assim.  Fosse hoje talvez os acontecimentos tivessem desenrolar diferente.
Nunca soube para onde ela foi.  Sei, hoje, que de vez em quando o maior amor do mundo ainda aperta meu coração.

Gilberto Leite
gilbertoleite.sp@gmail.com

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