quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Putas bem-aventuradas


 Joana se deitara com todo tipo de homem, tantos que nem era possível contar.
 Um dia, de tanto ouvir a consciência - dos outros - resolveu aceitar o convite para a conversão.
 No templo, um representante de Deus pediu-lhe uma certa porcentagem de seus ganhos em troca da salvação.  Salvação da alma.
Temendo manchar o divino cofre com dinheiro de bordel, Joana  confessou ao puro homem de onde vinha seu sustento, como era sua vida.
Em resposta ouviu que "Deus não escolhe cédulas nem moedas, não pergunta a origem nem o labor exercido para obtê-las, todas são bem-vindas desde que dadas com fé e o que importa é o amor com que se doa"
Encheu-se Joana de alívio e paz, uma espécie de permissão divina para seus deslizes veniais: "Se meu dinheiro é bom para Deus e os meios pelos quais me vem não são condenáveis segundo o santo homem, meu ofício não haverá de ser passível de punição". 
Saiu feliz, sentindo-se amplamente abençoada, que seu dinheiro não era sujo para Deus. Foi-se sentindo-se aceita, pois concluíra, no Juízo o Pai não a julgará pelas obras do corpo, mas avaliará sua alma. Assim entendendo resolveu não se preocupar com a redenção no interior da igreja mas em obras, esqueceu a conversão,  prosseguiu na profissão.

Joana havia sido menina muito pobre, desamparada, e num gesto de verdadeira caridade e amor, há muito, desde que pode, mantinha paralelamente ao seu trabalho de "vida fácil" um pequeno comromisso de assistência a crianças e mulheres da rua , viadutos, vielas e abandono.
Foi por isso que ela e eu nos conhecemos.

 (Joana se deitava com todo tipo de homem que nem era possível saber quantos.)

Estávamos em tempo de Natal.  Meu grupo e eu caminhávamos pela noite perigosa, em apoio aos desvalidos, oferecendo-lhes um pouco de alimento fresco.  Levávamos também alguns brinquedos para as crianças desgraçadas , filhas dos desvalidos.
Nessa mesma rua escura, pelo lado oposto, vinham três mulheres destemidas enfrentando igualmente a escuridão e seus perigos.   Ofereciam doces, bolos e refrigerantes aos mesmos desgraçados desvalidos (desgraçado e desvalido são a mesma coisa assim como bendito e venturoso).
Três mulheres destemidas, benditas e venturosas, ofereciam doces, bolos e refrigerantes. E rimos muito quando nossos grupos se encontraram sob um viaduto da Rua Santo Antonio na Bela Vista.  Uma delas disse ser aquela coincidência de encontro uma obra de Deus:
    " - Vocês dão o salgado e nós a sobremesa... 
     Vocês, brinquedos; nós, refrigerantes... Não é coincidência, é providência.  Divina Providência."
Foi Joana quem falou. Aquela Joana que se deitava com tantos homens que nem se podia imaginar.   Tornamo-nos amigos.

 (Um dia ela me falou de sua vida, assim eu soube o que agora conto aqui)

Ganhava bem,  dinheiro suficiente e alguma sobra todo mês.
Puderam, então, ela e duas amigas - amigas de profissão - juntarem-se para levar consolação aos miseráveis. Não em forma de orações pois as igrejas já estavam repletas de rezadores.
Ela e duas amigas - amigas de profissão - alugaram um casarão nos confins do arrabalde.  E passaram a acolher mães e crianças miseráveis (que é igual a desvalidas, desgraçadas). Somente elas, as três mundanas de vida fácil.
" Nunca as visitou um religioso, uma religiosa; jamais uma assistente social. Nem o Governo, nem político.  Nem os Direitos Humanos passaram lá."  - disseram-nos.

 Mantiveram o abrigo até quando lhes foi possível.  A vizinhança se opôs.
 A casa, cheia de mulheres e moleques de rua importunou a puritana vizinhança. Imaculada vizinhança que, com ajuda de autoridades púbicas, os expulsou de lá.
No dia de irem embora ela e as mães e as crianças, não havia um religioso, uma religiosa; não esteve uma assistente social. Nem o Governo, nem político.  Nem os Direitos Humanos passaram lá. 
Joana e as duas amigas de profissão seguem vida de bordel. Entretanto, duas vezes por semana, religiosamente, vão às ruas à noite visitar seus desabrigados, desvalidos, desgraçados. Sem patrocínio de ninguém. Usam apenas as sobras do dinheiro que ganham por abrir as pernas a tantos homens que nem é possível contar.

Joana já passou dos quarenta anos há um bom tempo, mas se mantém tão em forma que ainda permanece no ofício.  Seu filho mais velho em breve irá se formar em Tecnologia da Informação. A filha do meio pretende trabalhar na área de  gestão de recursos humanos. A menor quer ser enfermeira. E será, afirma convicta.
Não sei se os filhos têm conhecimento das atividades dela. Sabendo ou não, devem sentir orgulho da mãe Joana, sem trocadilho.
Não faz diferença ser filho de santa ou filho de puta como Joana. 
Beatitude é bênção que Deus derrama sobre quem tem bom coração.
Joana - e duas amigas de profissão - estão, em vida, beatificadas pelos desvelos aos pobres desvalidos desgraçados, e santificadas pelo mesmo Deus que criou mulheres puras e putas.
Bem-aventuradas sejam todas as mulheres boas de espírito.
Amadas sejam, façam o que fizerem. Hoje e sempre e por todos os séculos dos séculos.




Gilberto Leite

gilbertoleite.sp@gmail.com

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