quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Minha filha





Outro dia, minha filha nasceu.
Com as pontas dos dedos da mão esquerda eu afirmava os pezinhos dela seguramente acomodada em meu antebraço, protegida em meu peito; com a outra mão eu a acariciava, fazendo-a sentir a presença do papai. 
Acolhendo-a dessa forma, tantas foram as vezes que cantei para ela dormir! Eu me lembro de muitas cantigas de que ela gostava, mas, em especial de duas com trechinhos assim: “Se essa rua, se essa rua fosse minha / Eu mandava, eu mandava ladrilhar...” e “Vem meu ursinho querido, meu companheirinho, Ursinho Pimpão / Vamos sonhar aventuras...” Era tanta felicidade!
Ela cresceu um pouquinho. Passou da medida do antebraço. Mudou-se para o colo. Mais um tempinho e já estava “montando cavalinho” – perninhas envolvendo meu pescoço, sentada em meus ombros – fazendo lindas viagens pelo mundo da imaginação: íamos à casa do coelhinho cinzento, ao castelo do fundo do mar, ao palácio dos anjinhos das nuvens branquinhas do céu, à floresta onde viviam todos os bichos bonzinhos – e todos são muito bons - entre flores, abelhas, borboletas e pássaros de todas as espécies...
Num outro dia, assim de repente, eu me vi empurrando-a no primeiro triciclo que ela ganhou. Ela não tinha forças para pedalar, eu empurrava, ela ria, ria...
Como brinquedos não crescem, ela ficou maior que o triciclo. Não cabia mais nele.
Foi por isso que veio a primeira bicicletinha, com duas rodinhas de apoio atrás. Eu ainda a empurrava ao mesmo tempo em que segurava porque apesar das rodas de apoio, ela ainda não tinha adquirido o equilíbrio necessário para lançar-se sozinha sem cair.
Veio a segunda bicicleta. Eu me lembro, brincávamos no jardim do Lyons Clube do Tucuruvi, que ela chamava de Parque do Portão Verde porque todo o gradil que o cercava –e ainda cerca–, inclusive o portão principal, tinham aquela cor.
Foi lá, que pela primeira vez, sem ela perceber, eu soltei a bicicleta. Ela continuou pedalando e se equilibrando sozinha, eu ia correndo ao lado sem interferir. Ao perceber que eu não mais a segurava, parou, como se já fosse experiente, exclamando:
“Pai, você soltou!”
“Soltei porque você já aprendeu a pedalar sozinha, filha... Vamos repetir?”
Foi uma tarde muito feliz. Ficamos algumas horas indo e vindo sempre em linha reta. Ela pedalando e eu correndo ao lado ou um pouco atrás. Cansei-me muito, na mesma intensidade em que enchi-me de alegria.
Na outra semana ela aprendeu a fazer curvas. Bem longas no início, mas assim que adquiriu confiança lançou-se em curvas mais arrojadas. Aperfeiçoou-se com rapidez. Adquiriu um jeitinho muito elegante de andar de bicicleta. Seus cabelos finos, castanhos claros, ora balançavam, ora esvoaçavam no ar. Então as mãos do papai segurando pelo dispositivo porta-brinquedos atrás do selim, definitivamente não eram mais necessárias.
Cresceu. Como minha filha cresceu! Veio a bicicleta maior pois a anterior e ela já não se cabiam.  O papai protetor, correndo junto, já não era mais necessário. Agora eu a olhava de longe, sentado no gramado.
Passou.
Um dia desses, nem faz um mês,  estávamos toda a família num restaurante da Serra da Cantareira comemorando os seus 17 anos.
Almoçamos juntos, assistimos ao final do campeonato de Fórmula um juntos (o piloto Lewis Hamilton ganhou seu primeiro título de campeão mundial.)  E por mais que eu me esforçasse para me concentrar na reunião, na corrida transmitida pela TV,  meus pensamentos acabavam se desviando, indo buscar reminiscências de minha filha. Desde o primeiro minuto na maternidade, da cantiga “se esta rua fosse minha...” até seus 17 anos. Era um filme rodando em minha memória, rodando sem parar.
Eu senti, mais uma vez, que o tempo e a vida são implacáveis. Eles passam impiedosos, arrastam tudo, levam embora mesmo os momentos mais emocionantes. O que por um lado é bom por criar espaço para novas situações de felicidade igualmente intensas. Por outro lado... há algo que tempo e vida não corrigem, não repõem: A saudade; o querer viver novamente uma determinada situação, o desejo de repetir uma experiência; o cheiro de talco; o bebê acolhido no antebraço; as mãos firmes segurando um triciclo; o contar histórias à noite, de fadas e castelos, de bruxas e magias...
Daqui a pouco ela estará na faculdade. Faltam dois meses. Penso que eu mesmo a poderei levar para realizar a prova, ensinar-lhe o caminho.
Sei que no começo eu ou sua mãe a iremos levar ou trazer muitas vezes. .
Sei também que, assim como as mãos segurando o triciclo, em breve ela não precisará mais que a levemos ou tragamos da faculdade.
Depois da faculdade, não sei. Não sei...
A única coisa que sei é que o tempo e a vida passam implacavelmente.
Minha filha já não discute mais biologia, química e matemática conosco, os pais. Ela sabe mais que nós.
Os voos dela são mais altos, não se prendem mais a umas pedaladas numa bicicletinha com rodas de apoio.
Em breve ela voará por alturas e distâncias que não poderemos nem saberemos acompanhar. Nem deveremos, que o espaço não nos pertencerá, as aventuras serão dela.
“Felizes voos, filha.” – Desejo de coração.
O pai fica aqui, de longe, acompanhando com olhos e alma. Torcendo para que todas as brisas que tomar no rosto e corpo, nesse voo, sejam refrescantes.
Mas, enquanto esse momento da independência completa ainda está apenas se prenunciando, eu quero viver tudo o que ainda nos sobra juntos, essa interdependência que também vai se diluindo. Porque, repito, tudo passa muito depressa.

Filha, esta mensagem não foi criada para cumprir uma pauta, não foi tirada da experiência de algum outro, nem foi copiada de nenhum poeta. Foi escrita para você e quando a ler, guarde no coração o que for possível extrair, mas principalmente meu recado de que nesta nossa vida tudo passa. Agarre todos os momentos com todas as suas forças e todo o seu amor enquanto eles durarem. Viva com plenitude qualquer detalhe de sua vida pois muitos detalhes poderão vir a se tornar gigantescas saudades em um futuro muito breve: para mim a saudade às vezes vem em forma de uma chuquinha de chá, uma canção de ninar, um cheiro de talco; para nós, um triciclo, uma brincadeira de gravar programa de televisão na sala – com microfone e tudo, lembra?– um almoço de dezessete anos, uma risada gostosa, frases trocadas pelo computador, um par de tênis, uma chuva, as travessuras da cachorra de estimação, o olhar-se no espelho com a cara pintada de palhaça, fragmentos de um texto de teatro, o teatro, um sonho bobo, um sonho sério, um sonho “impossível”, um desejo possível; até mesmo a cara chata do pai quando bate o incômodo da disritmia no shopping center...  Tudo passa e não volta mais.


(Este texto foi escrito no dia seguinte ao do aniversário de dezessete anos de minha filha) 


Gilberto Leite
gilbertoleite.sp@gmail.com





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