Outro
dia, minha filha nasceu.
Com
as pontas dos dedos da mão esquerda eu afirmava os pezinhos dela seguramente
acomodada em meu antebraço, protegida em meu peito; com a outra mão eu a
acariciava, fazendo-a sentir a presença do papai.
Acolhendo-a
dessa forma, tantas foram as vezes que cantei para ela dormir! Eu
me lembro de muitas cantigas de que ela gostava, mas, em especial de duas com
trechinhos assim: “Se essa rua, se essa rua fosse minha / Eu mandava, eu
mandava ladrilhar...” e “Vem meu ursinho querido, meu companheirinho, Ursinho
Pimpão / Vamos sonhar aventuras...” Era tanta felicidade!
Ela
cresceu um pouquinho. Passou da medida do antebraço. Mudou-se para o colo. Mais
um tempinho e já estava “montando cavalinho” – perninhas envolvendo
meu pescoço, sentada em meus ombros – fazendo lindas viagens pelo mundo da
imaginação: íamos à casa do coelhinho cinzento, ao castelo do fundo do mar, ao palácio
dos anjinhos das nuvens branquinhas do céu, à floresta onde viviam todos os
bichos bonzinhos – e todos são muito bons - entre flores,
abelhas, borboletas e pássaros de todas as espécies...
Num
outro dia, assim de repente, eu me vi empurrando-a no primeiro
triciclo que ela ganhou. Ela não tinha forças para pedalar, eu empurrava, ela
ria, ria...
Como
brinquedos não crescem, ela ficou maior que o triciclo. Não cabia mais nele.
Foi
por isso que veio a primeira bicicletinha, com duas rodinhas de apoio atrás. Eu ainda a empurrava ao mesmo tempo em que segurava porque apesar das rodas de
apoio, ela ainda não tinha adquirido o equilíbrio necessário para lançar-se
sozinha sem cair.
Veio
a segunda bicicleta. Eu me lembro, brincávamos no jardim do Lyons Clube do
Tucuruvi, que ela chamava de Parque do Portão Verde porque todo o gradil que o
cercava –e ainda cerca–, inclusive o portão principal, tinham aquela cor.
Foi
lá, que pela primeira vez, sem ela perceber, eu soltei a bicicleta. Ela
continuou pedalando e se equilibrando sozinha, eu ia correndo ao lado sem
interferir. Ao perceber que eu não mais a segurava, parou, como se já fosse
experiente, exclamando:
“Pai,
você soltou!”
“Soltei
porque você já aprendeu a pedalar sozinha, filha... Vamos repetir?”
Foi
uma tarde muito feliz. Ficamos algumas horas indo e vindo sempre em linha reta.
Ela pedalando e eu correndo ao lado ou um pouco atrás. Cansei-me muito, na
mesma intensidade em que enchi-me de alegria.
Na
outra semana ela aprendeu a fazer curvas. Bem longas no início, mas assim que
adquiriu confiança lançou-se em curvas mais arrojadas. Aperfeiçoou-se com
rapidez. Adquiriu um jeitinho muito elegante de andar de bicicleta. Seus cabelos
finos, castanhos claros, ora balançavam, ora esvoaçavam no ar. Então as mãos do
papai segurando pelo dispositivo porta-brinquedos atrás do selim,
definitivamente não eram mais necessárias.
Cresceu.
Como minha filha cresceu! Veio a bicicleta maior pois a anterior e ela já não
se cabiam. O papai protetor, correndo junto, já não era mais necessário.
Agora eu a olhava de longe, sentado no gramado.
Passou.
Um
dia desses, nem faz um mês, estávamos toda a família num restaurante da
Serra da Cantareira comemorando os seus 17 anos.
Almoçamos
juntos, assistimos ao final do campeonato de Fórmula um juntos (o piloto Lewis
Hamilton ganhou seu primeiro título de campeão mundial.) E por mais que
eu me esforçasse para me concentrar na reunião, na corrida transmitida pela TV, meus pensamentos acabavam se desviando, indo buscar reminiscências de
minha filha. Desde o primeiro minuto na maternidade, da cantiga “se esta rua
fosse minha...” até seus 17 anos. Era um filme rodando em minha memória,
rodando sem parar.
Eu
senti, mais uma vez, que o tempo e a vida são implacáveis. Eles passam
impiedosos, arrastam tudo, levam embora mesmo os momentos mais emocionantes. O
que por um lado é bom por criar espaço para novas situações de felicidade
igualmente intensas. Por outro lado... há algo que tempo e vida não corrigem,
não repõem: A saudade; o querer viver novamente uma determinada situação,
o desejo de repetir uma experiência; o cheiro de talco; o bebê acolhido no
antebraço; as mãos firmes segurando um triciclo; o contar histórias à noite, de
fadas e castelos, de bruxas e magias...
Daqui
a pouco ela estará na faculdade. Faltam dois meses. Penso que eu mesmo a
poderei levar para realizar a prova, ensinar-lhe o caminho.
Sei
que no começo eu ou sua mãe a iremos levar ou trazer muitas vezes. .
Sei
também que, assim como as mãos segurando o triciclo, em breve ela não precisará
mais que a levemos ou tragamos da faculdade.
Depois
da faculdade, não sei. Não sei...
A
única coisa que sei é que o tempo e a vida passam implacavelmente.
Minha
filha já não discute mais biologia, química e matemática conosco, os pais. Ela
sabe mais que nós.
Os
voos dela são mais altos, não se prendem mais a umas pedaladas numa
bicicletinha com rodas de apoio.
Em
breve ela voará por alturas e distâncias que não poderemos nem saberemos
acompanhar. Nem deveremos, que o espaço não nos pertencerá, as aventuras serão
dela.
“Felizes
voos, filha.” – Desejo de coração.
O
pai fica aqui, de longe, acompanhando com olhos e alma. Torcendo para que todas
as brisas que tomar no rosto e corpo, nesse voo, sejam refrescantes.
Mas, enquanto
esse momento da independência completa ainda está apenas se prenunciando, eu
quero viver tudo o que ainda nos sobra juntos, essa interdependência que também
vai se diluindo. Porque, repito, tudo passa muito depressa.
Filha, esta
mensagem não foi criada para cumprir uma pauta, não foi tirada da experiência
de algum outro, nem foi copiada de nenhum poeta. Foi escrita para você e quando
a ler, guarde no coração o que for possível extrair, mas principalmente meu
recado de que nesta nossa vida tudo passa. Agarre todos os momentos com todas
as suas forças e todo o seu amor enquanto eles durarem. Viva com plenitude
qualquer detalhe de sua vida pois muitos detalhes poderão vir a se tornar
gigantescas saudades em um futuro muito breve: para mim a saudade às vezes vem
em forma de uma chuquinha de chá, uma canção de ninar, um cheiro de talco; para
nós, um triciclo, uma brincadeira de gravar programa de televisão na sala – com
microfone e tudo, lembra?– um almoço de dezessete anos, uma risada gostosa,
frases trocadas pelo computador, um par de tênis, uma chuva, as travessuras da
cachorra de estimação, o olhar-se no espelho com a cara pintada de palhaça,
fragmentos de um texto de teatro, o teatro, um sonho bobo, um sonho sério, um
sonho “impossível”, um desejo possível; até mesmo a cara chata do pai quando
bate o incômodo da disritmia no shopping center... Tudo passa e não volta
mais.
(Este texto foi escrito no dia seguinte ao do aniversário de dezessete anos de minha filha)
Gilberto Leite
gilbertoleite.sp@gmail.com
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