quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Tempo não existe



Pouco antes da meia-noite os fogos já espocavam por todos os lados. 
Nas ruas gritos e cantigas e algazarras. O mundo todo parecia em festa como se não houvesse violência nem dor nem fome nem injustiças em lugar algum.
Dentro de casa, enquanto o velho televisor mostrava as comemorações pela virada do ano nas principais cidades do Planeta, todos nós, atentos à passagem dos últimos minutos a nos separar do novo ano, íamos sendo tomados por uma comoção incomum, um estado de quase felicidade e de esperanças somente sentidos em ocasiões como aquela.
Despistei. Saí sem dar a perceber. Fui ao jardim de casa onde não havia ninguém comemorando nada. De lá era possível avistar estrelas pairadas sobre a humanidade
Eu era muito jovem. Meu coração pulsava com maior vigor do que esse com que está pulsando agora. Meu cérebro, ao contrário, mais cauteloso que o coração convidou-me a refletir para além do que o peito ansiava.
Olhei para o meu interior e não vi luzes, nem fogos de artifícios, nem esperanças: 
No dia seguinte minha avó continuaria velha, arqueada e cozinhando e lavando nossas roupas apesar de sofrer de dor crônica na coluna; minha mãe trabalharia fora, da madrugada à noite, longe, muito longe, controlando pedais e agulhas de máquinas de costura industrias; meus irmãos continuariam inocentes até crescerem e quando crescessem possivelmente ficariam céticos igual a mim; meu pai não voltaria nunca mais do mundo das almas invisíveis; minha doença não se curaria; meu tio mais velho não se livraria do câncer; os mendigos não enriqueceriam; os desvalidos não se consolariam; os cães sarnentos continuariam vadios nas ruas; as religiões não deixariam de oferecer salvação e vida eterna em troca de bens terrenos; as goteiras na varanda e na cozinha permaneceriam nos dias chuvosos; o dinheiro não sobraria para comprar roupas novas, calçados bonitos, doces, boneca, carrinhos...

Compreendi naquela hora que Ano Novo não muda nada. Que todas as meias-noites são iguais e datas não transformam vidas. 
As coisas sim, passam, envelhecem, degradam-se, por si e em si.
Coisas e pessoas. Independentemente do tempo porque, descobri também, tempo não existe. 
O que passa é a vida, tempo não existe.
Já que era assim, Ano Novo começou a me parecer algo tolo: não há diferença entre o dia primeiro e o dia trinta, entre o dezenove e o vinte e cinco...
Nossos aniversários, então, que bobagem! Oferecem-nos presentes, felicitam-nos por mais um ano, só que esse ano não nos pertence, nada tem a ver com você nem comigo porque se ele aconteceu foi para o planeta ao dar um giro em torno do sol. Tempo é a medida entre um evento e outro.
Cada corpo celeste, cada sol ou galáxia ou universo têm suas medidas de ano, mas não há tempo algum a passar. 
O meu ano, ou as minhas medidas são as coisas que faço e as voltas que dou em torno da minha vida; meu tempo é o espaço decorrido ou percorrido entre minhas ações; é a distância entre dois fatos, é a duração de um trabalho ou da minha vida. Meu envelhecimento material sou eu passando e não um tempo exterior, que não existe. 
Anos são relativos, horas são medidas virtuais dentro da relatividade. Tempo, repito, não existe.
O que passa são as coisas e todos nós. Já tive sentimentos que acabaram, animaizinhos que deixaram de existir, pessoas que viraram saudade... 
Tempo não existe. O que passa são as coisas e todos nós.
Muito rapidamente.


Gilberto Leite

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